terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Gott ist tot"

Quando publicou esta declaração, Nietzsche, como homem de seu tempo, estava afirmando que deus deixava de ser o centro do qual emanava o poder absoluto. Deus era retirado de seu domínio pela força das revoluções norte-americana e francesa e a consequente cisão entre o estado e a igreja, da separação entre o poder temporal e o poder espiritual.
A revolução industrial do século XVIII (1700 -1800) promoveu a ascenção de uma nova classe social, proprietária do capital, a burguesia. E esta classe, guiada por seus interesses, promoveu por sua vez novos valores, na época revolucionários, porque desafiavam a ordem social estabelecida. A introdução de métodos científicos de produção, na otimização dos processos fabris, exigiam uma nova racionalidade menos religiosa e mais concreta, exigiam ciência e não orações. Associado a isso, enaltecia-se o valor do indivíduo, senhor absoluto da sua vida privada, como o centro e destino dos empreendimentos capitalistas, em oposição à criatura medieval, que tinha por único objetivo na sua vida a salvação de sua alma. O indivíduo e sua ideologia - o individualismo - nasce como a personificação do sucesso econômico da prosperidade capitalista, ascendendo socialmente apenas por seus próprios méritos pessoais.
Isso se contrapôs ao estado absoluto dos reis e rainhas ungidos por deus e controlado pela igreja católica, a grande potência medieval, onde as classes sociais se dividiam em nobreza, clero e plebe. A plebe se dividia em camponeses, que deviam vassalagem aos nobres por habitarem suas terras, e os burgueses, cidadãos que exerciam as ocupações urbanas como artesãos, banqueiros e comerciantes.
A articulação destes três últimos - artesãos, banqueiros e comerciantes - em torno do novo modo de produção deu origem à burguesia, que emergia dentro da velha ordem como detentora do poder econômico. Seus interesses privados - "laissez faire, laissez aller, laissez passer" - estavam em oposição direta aos do antigo regime monárquico absolutista, no qual os reis eram coroados pela igreja por direito divino e o poder destes derivava de sua escolha ordenada por um representante de deus, conferindo ao clero status político na sociedade. À nobreza cabia a propriedade da terra, fonte do seu ócio, de toda a produção e riqueza e de seu poder como classe social.
A morte de deus nesse processo de substituição do poder espiritual, representado na Terra pelo rei e pelo clero, é o rito de passagem no qual o poder temporal da burguesia torna-se hegemônico, preponderante na sociedade que se consolida no século XIX (1800 - 1900).
Deus sai do centro do poder público da vida e é reduzido a uma dimensão privada, entidade espiritual habitante da esfera das escolhas individuais. Deus deixa de controlar a sociedade com a derrubada da monarquia e se torna um deus íntimo, pessoal, destituído do poder político com a instalação das assembléias nacionais, instâncias democráticas do novo poder burguês.
Nas cidades medievais a arquitetura revela a transformação das sociedades. No centro destas cidades há uma igreja ou uma catedral, habitualmente a maior e mais alta das contruções. A cidade (o burgo) gravitava em torno desse centro espiritual e toda a vida era ordenada e dirigida a partir desse centro. Aos poucos e muito mais evidente nas novas cidades das Américas, o capital e suas maiores instituições, os bancos, passa a ocupar o centro com seus arranha-céus, símbolos do poder temporal e secular. As igrejas ainda por ali permanecem, mas agora apenas como modestas lembranças de um poder e de uma glória que não mais existem.
Assim foi que deus, na morte simbólica anunciada por Nietzsche, não deixou de existir. Não morreu de fato.
Foi cassado em seu poder poítico, substituido pelo poder do capital.
Exilado no íntimo dos indivíduos, deixou de fazer diferença nos negócios.

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