quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O Vício Patrimonialista e o Futuro do Brasil.

Longe de querer esgotar o assunto, procuro introduzir o debate com viés político sobre um dos aspectos determinantes da identidade brasileira.

Uma das grandes dificuldades do Brasil se constituir em uma economia verdadeiramente capitalista é a cultura patrimonialista que define a ideologia das elites nacionais desde a fundação da colônia.
É um vício cultural que confunde riqueza com posse, com propriedade, não com a produção de riqueza mas com a aquisição de ativos, com a acumulação de patrimônio. A propriedade aqui não é vista como propriedade dos meios de produção, como capital para acumulação de mais capital através do ciclo da mercadoria. Na visão patrimonialista, a propriedade de ativos de qualquer natureza é vista como um fim em si mesma, como o objetivo final de toda ação empreendedora. E se essa propriedade render dividendos na forma de aluguéis, juros ou outras rendas passivas, melhor ainda. Esse último aspecto é a meta suprema da elite patrimonialista, viver de rendas e nunca trabalhar. Então todo o empenho está dirigido para a construção de patrimônios por quaisquer meios, sendo o assalto ao estado o principal veio, a forma histórica de acumulação de riqueza desde a primeira distribuição das terras no país com as capitanias hereditárias.
A formação da elite econômica do Brasil foi determinada e ainda está em curso pela aquisição criminosa de terras, terrenos, imóveis e outros bens públicos que são apropriados pela fraude, pelo favoritismo, pela corrupção, pela grilagem. A propriedade vista com símbolo e veículo da riqueza importa não em trabalho, porque o trabalho é atividade de escravos, de pobres, de camponeses, eternos peões a serviços da fidalguia nacional. O trabalho é negativado como valor e condição social, como um castigo imposto aqueles que não possuem nenhum patrimônio, e que não devem possuí-lo - o patrimônio - porque este os emanciparia da condição de inferiores.
Então o meio para a conquista da riqueza não pode ser o trabalho. Na visão da nossa fidalguia, segundo Jorge Caldeira em Mauá - Empresário do Império, o trabalho é não apenas indigno como uma afronta aos bens nascidos. O trabalho é destinado aos pobres que devem produzir para que seus senhores se beneficiem dos lucros e com estes adquirir mercadorias finas, caras e extravagantes, exclusivamente importadas. Tudo que é bom é estrangeiro pago com o nosso melhor exportado.
Uma longa tradição consolidada de rapinagem, por meio da apropriação de terras para a exploração de atividades primárias destinadas à exportação, definiu o Brasil colônia. A propriedade é vista nesse contexto como um mecanismo brutal de geração de riqueza com o esgotamento dos recursos, pela completa exaustão deste capital natural associado ao consumo de mão-de-obra escrava até a morte. Mas a atividade econômica desta natureza, mesmo que manifeste algumas características da produção capitalista, como a produção voltada para o mercado, a forma de organização da produção em série (engenho de açucar), não pode ser definida como capitalista porque seu núcleo não é dirigido para a acumulação de capital. As trocas desiguais entre a colônia e a matriz européia permitem à elite colonial uma vida rica no meio de uma população de miseráveis, mas impedem o ciclo de reprodução autônomo do capital. Os lucros vindos da exploração do patrimônio se transformam tão somente em renda para o consumo dessas mesmas elites, o que forma sua percepção da origem da riqueza e define toda estrutura social do país. A história econômica do Brasil é moldada pela predação dos recursos naturais abundantes, tão abundantes que pareciam inesgotáveis e o comércio fornecedor de escravos, outra atividade lucrativa, que parecia também fonte inexaurível de mão-de-obra.
Na visão que vai se consolidando, a riqueza se constitui na propriedade de terras e escravos, recursos levados ao esgotamento pela exploração ilimitada, na produção de matérias-primas primárias. A noção de que o trabalho gera a riqueza fica desse modo oculta sob o manto da propriedade, parecendo que dessa se origina a prosperidade. O lucro gerado pela atividade assim constituida é muito mais determinado pela não remuneração dos meios de produção, principalmente os naturais, como a fertildade do solo, as florestas, etc. do que pela racionalização capitalista da produção. Lembremos ainda que o trabalho produtivo durante a maior parte de nossa história foi realizado por escravos de origem africana, que eram considerados também propriedade e capital. Historicamente o nível técnico da atividade produtiva sempre foi precário e ineficiente, suficiente apenas para cobrir os custos e geram a renda para o consumo e reposição da mão-de-obra. O atraso técnico implicava em baixa produtividade, o que se converte, do ponto de vista dos recursos naturais, em grandes desperdícios.
A atividade econômica no Brasil ficou muitos séculos nesse limbo pré-capitalista e a visão de mundo que produziu é constituinte ainda de grande parte da ideologia dominante das elites nacionais. Com o vício perceptivo de que a origem da riqueza está no patrimônio e não no trabalho, outros vícios agregam-se a este formando uma percepção de mundo peculiar. A persistência das formas arcaicas de exploração que misturam modernidade com escravatura mostram a resistência que enfrenta no país o capitalismo industrial. À indústria foi negado por muito tempo o reconhecimento da capacidade de gerar riquezas deste lado do equador. Importava mais possuir do que produzir.
Como reforço dessa visão, a riqueza parece se multiplicar pela valorização passiva das propriedades na forma de terras e terrenos, e de outros ativos que magicamente aumentam de valor pela especulação. O investimento patrimonialista é sobretudo imobiliário e a maior parte do esforço se concentra na aquisição de propriedades de imóveis. Terras da União, terras públicas que são ocupadas ilegalmente, terrenos públicos que são cedidos gratuitamente, ou vendidos por valores simbólicos aos amigos do poder, despropriação violenta e criminosa de pequenos proprietários urbanos e rurais, concentração de terras para especulação são origem de grande parte da riqueza patrimonial das elites brasileiras.
Nessa visão patrimonialista, o estado é visto como o grande provedor de ativos e que a conquista do poder é a garantia da continuidade desse processo de acumulação primitiva de capital. O enriquecimento no Brasil é visto como o acúmulo de patrimônio por todo e qualquer meio e a práxis derivada deste processo é a corrupção. A troca de favores entre os detentores de postos de poder no aparelho do estado em todas as suas instâncias torna-se regra e perpetua o patrimonialismo. O crime torna-se atividade normal e normalizadora dos processos de enriquecimento. Sonegação de impostos, compras superfaturadas, tráfico de influência, tráfico de drogas, contrabando, obras publicas que valorizam regiões atingidas pela especulação, corrupção em todos os níveis do poder público todas as outras fraudes, compadrio, nepotismo, constituem-se não em desvios mas o núcleo do mecanismo de apropriação patrimonialista.
Muito tardiamente emerge a percepção de que a atividade produtiva nos moldes do capitalismo moderno também, mas não exclusivamente, produz riqueza na forma de mercadorias. Mas mesmo aqueles capitalistas nacionais que são proprietários de empresas produtoras de mercadorias, guardam uma relação de proximidade ideológica com as elites tradicionais e com ela forma alianças políticas para a conquista do estado. Também desejam a acumulação de patrimônio como objetivo final de sua atividade produtiva. É comum no Brasil, entre as empresas familiares, estas se constiturem em "empresas pobres de donos ricos" que procuram o lucro pelos mesmos mecanismos não capitalistas na sua atividade. A esperteza nacional se manifesta na busca por benefícios indiretos, não relacionados com a atividade principal. Esses benefícios podem ser na forma de isenção e incentivo fiscal ou sonegação pura e simples, podem ser na forma de trabalho escravo, no não recolhimento de encargos trabalhistas, no não pagamento de horas extras, na receptação de mercadorias roubadas ( o caso de roubo de cargas sob encomenda que virou uma grande indústria), nas compras fraudulentas, no fornecimento superfaturado às entidades públicas, nas licitações viciadas e cartelizadas, etc.. A lista é longa.
Mas o que se destaca desse quadro generalizante, mesmo que não completo, é o papel que o estado assume no processo de promover o enriquecimento daqueles que nele ocupam cargos de poder.
E a democratização do Brasil trouxe à cena novos atores que se candidatam, literalmente, a ocupar o poder para favorecimento de seus padrinhos e partidos.
Talvez essa nova rapinagem ou, dito de outra forma, esse neo-patrimonialismo seja uma etapa necessária ao amadurecimento da democracia brasileira, mesmo a um custo absurdo. Porque a democracia tem favorecido, mais do que inibido, as práticas criminosas de roubo do estado. Porque agora lideranças políticas emergentes que entram no jogo viciado pela porta legítima da eleição, também recorrem aos mecanismos criminosos para atender os interesses de seu grupo.
Porque, com a democracia, se multiplicaram os cargos públicos a serem ocupados politicamente e com eles as oportunidades para a fraude. O estado é fragmentado, leiloado de acordo com o cacife politico de cada grupo ou partido, formando feudos a serem explorados. Numa linguagem mais contemporânea, são "nichos de mercado" políticos, que têm por objetivo final permitir o enriquecimento dessas verdadeiras máfias pela espoliação do estado. Onde for possível fraudar e roubar, seguramente isso será tentado.
Por todas essas razões é que assistimos os discursos que quando falam em promover a educação, constroem-se escolas que nunca vão funcionar, que quando falam em saúde, constroem-se hospitais sem médicos nem equipamentos, quando falam em transporte constroem-se estradas e pontes que levam a lugar nenhum.
Se a qualidade do serviço público é precária é porque não é possível roubar dos salários de médicos, policiais e professores; então paga-se mal para gastar onde são maiores as chances de fraude, como nas compras e obras públicas.
O que é assombroso é perceber a ausência ou tibieza política dos grupos capitalistas emergentes beneficiados pela expansão e consolidação do mercado interno. Provavelmente ainda permanecem imersos dentro da ideologia patrimonialista sem perceber que esta tradição secular brasileira é um obstáculo a sua prosperidade. Por inércia e ou deslumbramento acabam aderindo a uma ideologia que deveriam combater. Surprendente é a falta de percepção deste grupo para os mecanismos e políticas públicas que favoreçam a continua expansão dos mercados internos e com ela a sua própria prosperidade. Apenas para exemplificar, uma reforma agrária capitalista com a democratização da propriedade da terra, transformaria esses pequenos novos proprietários em um gigantesco mercado consumidor de todo o tipo de mercadoria, incluindo aí desde insumos e máquinas agrícolas até artigos de varejo.