quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O Vício Patrimonialista e o Futuro do Brasil.

Longe de querer esgotar o assunto, procuro introduzir o debate com viés político sobre um dos aspectos determinantes da identidade brasileira.

Uma das grandes dificuldades do Brasil se constituir em uma economia verdadeiramente capitalista é a cultura patrimonialista que define a ideologia das elites nacionais desde a fundação da colônia.
É um vício cultural que confunde riqueza com posse, com propriedade, não com a produção de riqueza mas com a aquisição de ativos, com a acumulação de patrimônio. A propriedade aqui não é vista como propriedade dos meios de produção, como capital para acumulação de mais capital através do ciclo da mercadoria. Na visão patrimonialista, a propriedade de ativos de qualquer natureza é vista como um fim em si mesma, como o objetivo final de toda ação empreendedora. E se essa propriedade render dividendos na forma de aluguéis, juros ou outras rendas passivas, melhor ainda. Esse último aspecto é a meta suprema da elite patrimonialista, viver de rendas e nunca trabalhar. Então todo o empenho está dirigido para a construção de patrimônios por quaisquer meios, sendo o assalto ao estado o principal veio, a forma histórica de acumulação de riqueza desde a primeira distribuição das terras no país com as capitanias hereditárias.
A formação da elite econômica do Brasil foi determinada e ainda está em curso pela aquisição criminosa de terras, terrenos, imóveis e outros bens públicos que são apropriados pela fraude, pelo favoritismo, pela corrupção, pela grilagem. A propriedade vista com símbolo e veículo da riqueza importa não em trabalho, porque o trabalho é atividade de escravos, de pobres, de camponeses, eternos peões a serviços da fidalguia nacional. O trabalho é negativado como valor e condição social, como um castigo imposto aqueles que não possuem nenhum patrimônio, e que não devem possuí-lo - o patrimônio - porque este os emanciparia da condição de inferiores.
Então o meio para a conquista da riqueza não pode ser o trabalho. Na visão da nossa fidalguia, segundo Jorge Caldeira em Mauá - Empresário do Império, o trabalho é não apenas indigno como uma afronta aos bens nascidos. O trabalho é destinado aos pobres que devem produzir para que seus senhores se beneficiem dos lucros e com estes adquirir mercadorias finas, caras e extravagantes, exclusivamente importadas. Tudo que é bom é estrangeiro pago com o nosso melhor exportado.
Uma longa tradição consolidada de rapinagem, por meio da apropriação de terras para a exploração de atividades primárias destinadas à exportação, definiu o Brasil colônia. A propriedade é vista nesse contexto como um mecanismo brutal de geração de riqueza com o esgotamento dos recursos, pela completa exaustão deste capital natural associado ao consumo de mão-de-obra escrava até a morte. Mas a atividade econômica desta natureza, mesmo que manifeste algumas características da produção capitalista, como a produção voltada para o mercado, a forma de organização da produção em série (engenho de açucar), não pode ser definida como capitalista porque seu núcleo não é dirigido para a acumulação de capital. As trocas desiguais entre a colônia e a matriz européia permitem à elite colonial uma vida rica no meio de uma população de miseráveis, mas impedem o ciclo de reprodução autônomo do capital. Os lucros vindos da exploração do patrimônio se transformam tão somente em renda para o consumo dessas mesmas elites, o que forma sua percepção da origem da riqueza e define toda estrutura social do país. A história econômica do Brasil é moldada pela predação dos recursos naturais abundantes, tão abundantes que pareciam inesgotáveis e o comércio fornecedor de escravos, outra atividade lucrativa, que parecia também fonte inexaurível de mão-de-obra.
Na visão que vai se consolidando, a riqueza se constitui na propriedade de terras e escravos, recursos levados ao esgotamento pela exploração ilimitada, na produção de matérias-primas primárias. A noção de que o trabalho gera a riqueza fica desse modo oculta sob o manto da propriedade, parecendo que dessa se origina a prosperidade. O lucro gerado pela atividade assim constituida é muito mais determinado pela não remuneração dos meios de produção, principalmente os naturais, como a fertildade do solo, as florestas, etc. do que pela racionalização capitalista da produção. Lembremos ainda que o trabalho produtivo durante a maior parte de nossa história foi realizado por escravos de origem africana, que eram considerados também propriedade e capital. Historicamente o nível técnico da atividade produtiva sempre foi precário e ineficiente, suficiente apenas para cobrir os custos e geram a renda para o consumo e reposição da mão-de-obra. O atraso técnico implicava em baixa produtividade, o que se converte, do ponto de vista dos recursos naturais, em grandes desperdícios.
A atividade econômica no Brasil ficou muitos séculos nesse limbo pré-capitalista e a visão de mundo que produziu é constituinte ainda de grande parte da ideologia dominante das elites nacionais. Com o vício perceptivo de que a origem da riqueza está no patrimônio e não no trabalho, outros vícios agregam-se a este formando uma percepção de mundo peculiar. A persistência das formas arcaicas de exploração que misturam modernidade com escravatura mostram a resistência que enfrenta no país o capitalismo industrial. À indústria foi negado por muito tempo o reconhecimento da capacidade de gerar riquezas deste lado do equador. Importava mais possuir do que produzir.
Como reforço dessa visão, a riqueza parece se multiplicar pela valorização passiva das propriedades na forma de terras e terrenos, e de outros ativos que magicamente aumentam de valor pela especulação. O investimento patrimonialista é sobretudo imobiliário e a maior parte do esforço se concentra na aquisição de propriedades de imóveis. Terras da União, terras públicas que são ocupadas ilegalmente, terrenos públicos que são cedidos gratuitamente, ou vendidos por valores simbólicos aos amigos do poder, despropriação violenta e criminosa de pequenos proprietários urbanos e rurais, concentração de terras para especulação são origem de grande parte da riqueza patrimonial das elites brasileiras.
Nessa visão patrimonialista, o estado é visto como o grande provedor de ativos e que a conquista do poder é a garantia da continuidade desse processo de acumulação primitiva de capital. O enriquecimento no Brasil é visto como o acúmulo de patrimônio por todo e qualquer meio e a práxis derivada deste processo é a corrupção. A troca de favores entre os detentores de postos de poder no aparelho do estado em todas as suas instâncias torna-se regra e perpetua o patrimonialismo. O crime torna-se atividade normal e normalizadora dos processos de enriquecimento. Sonegação de impostos, compras superfaturadas, tráfico de influência, tráfico de drogas, contrabando, obras publicas que valorizam regiões atingidas pela especulação, corrupção em todos os níveis do poder público todas as outras fraudes, compadrio, nepotismo, constituem-se não em desvios mas o núcleo do mecanismo de apropriação patrimonialista.
Muito tardiamente emerge a percepção de que a atividade produtiva nos moldes do capitalismo moderno também, mas não exclusivamente, produz riqueza na forma de mercadorias. Mas mesmo aqueles capitalistas nacionais que são proprietários de empresas produtoras de mercadorias, guardam uma relação de proximidade ideológica com as elites tradicionais e com ela forma alianças políticas para a conquista do estado. Também desejam a acumulação de patrimônio como objetivo final de sua atividade produtiva. É comum no Brasil, entre as empresas familiares, estas se constiturem em "empresas pobres de donos ricos" que procuram o lucro pelos mesmos mecanismos não capitalistas na sua atividade. A esperteza nacional se manifesta na busca por benefícios indiretos, não relacionados com a atividade principal. Esses benefícios podem ser na forma de isenção e incentivo fiscal ou sonegação pura e simples, podem ser na forma de trabalho escravo, no não recolhimento de encargos trabalhistas, no não pagamento de horas extras, na receptação de mercadorias roubadas ( o caso de roubo de cargas sob encomenda que virou uma grande indústria), nas compras fraudulentas, no fornecimento superfaturado às entidades públicas, nas licitações viciadas e cartelizadas, etc.. A lista é longa.
Mas o que se destaca desse quadro generalizante, mesmo que não completo, é o papel que o estado assume no processo de promover o enriquecimento daqueles que nele ocupam cargos de poder.
E a democratização do Brasil trouxe à cena novos atores que se candidatam, literalmente, a ocupar o poder para favorecimento de seus padrinhos e partidos.
Talvez essa nova rapinagem ou, dito de outra forma, esse neo-patrimonialismo seja uma etapa necessária ao amadurecimento da democracia brasileira, mesmo a um custo absurdo. Porque a democracia tem favorecido, mais do que inibido, as práticas criminosas de roubo do estado. Porque agora lideranças políticas emergentes que entram no jogo viciado pela porta legítima da eleição, também recorrem aos mecanismos criminosos para atender os interesses de seu grupo.
Porque, com a democracia, se multiplicaram os cargos públicos a serem ocupados politicamente e com eles as oportunidades para a fraude. O estado é fragmentado, leiloado de acordo com o cacife politico de cada grupo ou partido, formando feudos a serem explorados. Numa linguagem mais contemporânea, são "nichos de mercado" políticos, que têm por objetivo final permitir o enriquecimento dessas verdadeiras máfias pela espoliação do estado. Onde for possível fraudar e roubar, seguramente isso será tentado.
Por todas essas razões é que assistimos os discursos que quando falam em promover a educação, constroem-se escolas que nunca vão funcionar, que quando falam em saúde, constroem-se hospitais sem médicos nem equipamentos, quando falam em transporte constroem-se estradas e pontes que levam a lugar nenhum.
Se a qualidade do serviço público é precária é porque não é possível roubar dos salários de médicos, policiais e professores; então paga-se mal para gastar onde são maiores as chances de fraude, como nas compras e obras públicas.
O que é assombroso é perceber a ausência ou tibieza política dos grupos capitalistas emergentes beneficiados pela expansão e consolidação do mercado interno. Provavelmente ainda permanecem imersos dentro da ideologia patrimonialista sem perceber que esta tradição secular brasileira é um obstáculo a sua prosperidade. Por inércia e ou deslumbramento acabam aderindo a uma ideologia que deveriam combater. Surprendente é a falta de percepção deste grupo para os mecanismos e políticas públicas que favoreçam a continua expansão dos mercados internos e com ela a sua própria prosperidade. Apenas para exemplificar, uma reforma agrária capitalista com a democratização da propriedade da terra, transformaria esses pequenos novos proprietários em um gigantesco mercado consumidor de todo o tipo de mercadoria, incluindo aí desde insumos e máquinas agrícolas até artigos de varejo.

sábado, 11 de abril de 2009

Mundo Perfeito

Ainda o Pós-capitalismo

Enquanto a ordem estabelecida permanece sob a hegemonia do lucro, enquanto o contrato social que rege a maioria das sociedades humanas for fundamentado nos valores do capital, não pode haver 'pós-capitalismo'. E a crítica desarmada da razão pode apenas revelar as dores do sofrimento no mundo. Muitas vezes a cultura contemporânea - mesmo a crítica - que como tudo o mais assumiu a forma de mercadoria, manifesta uma incompreensão dos processos que regem a sociedade.
O que está implícito, a mensagem subliminar de todas essas manifestações é o surgimento de um vazio que as ideologias do capital não consegue mais preencher. O mundo perfeito do futuro da tecnologia, os frutos dourados do desenvolvimento econômico infinito, a noção de progresso continuado em direção ao futuro, a prosperidade material, o sucesso e a felicidade estampados nos cartões de crédito, as férias merecidas nos paraísos alhures. Essas visões do Éden que o capital balançou perante nossos olhos como a cenoura do burrinho estão se desvanecendo e revelando uma paisagem desolada, desumanizada, brutal da realidade contemporânea.
Todos aqueles que viveram - e muitos outros que morreram - embalados por essa utopia de fachada naturalmente sentem desespero com essa visão estarrecedora. Somos como anjos decaídos, arrojados ao abismo por um deus (capital) impiedoso. Não há mais futuro. Tudo se tornou escuro e assustador. Cada um de nós sente uma solidão acompanhada no meio de nossos colegas, amigos e parentes. Estamos emparedados em nossas vidas privadas remendando cacos de nossos sonhos e desejos estilhaçados.
Esse desespero surdo, emudecido, continua servindo aos interesses do capital. Vergar a vontade e o espírito das pessoas para poder coagí-las a aceitar resignadamente todas essas soluções que nunca resolveram problema algum, apenas produziram lucros.
O discurso da crise é tão lucrativo quanto o discurso da prosperidade se se souber onde investir.
Uma outra vida é possível e certamente desejada. Cabe-nos primeiro descobrir em que lugar estamos para podermos traçar uma rota de como chegar lá. Nada mais revolucionário do que não se submeter, do que parar de ouvir o canto de sereia da prometida e nunca realizada utopia do capital.
As coisas mais importantes da vida são as mais básicas. Todos precisamos de alimento, abrigo, agasalho. E também de conforto emocional e espiritual.
Precisamos de amizade, afeto, compreensão, solidariedade. Precisamos de uma relação integrada com o mundo natural do qual somos parte.
O grande questionamento é saber se para viver assim precisamos da mediação das instituições do capital, da bolsa de valores, do dinheiro, do trabalho assalariado, do lucro e da expropriação da natureza. Superar o capitalismo é primeiro sair da atmosfera de sua ideologia, de deixar de acreditar em suas mentiras.
Podemos começar a fazer perguntas contundentes como as crianças costumam fazer:
Por que as coisas tem preços?
Qual a origem dos preços?
Mais adiante:
As coisas precisam ter preço?
Elas deixariam de existir se não tiverem mais preço?
Terão ainda utilidade?
Veremos que as respostas a essas singelas perguntas abalarão as estruturas do mundo.

sábado, 4 de abril de 2009

Rua da Lapa

Sobre o pós-capitalismo

Os movimentos que já foram chamados de "Era de Aquário", "Nova Era", "Terceira Onda" (Alvin Tofler) e outros nomes sonoros tem ganhado força com o avançar das sucessivas crises cada vez mais globais. Emerge uma consciência de que estamos forçando os limites da Terra pela exploração irracional dos recursos naturais, simultaneamente a desestruturação das sociedades pela degradação das relações humanas das quais a mídia é uma das instâncias mais relevantes.
Todos esses movimentos de consciência clamam por um outro modo de vida mais humano, mais solidário, menos destrutível, sustentável, etc.. É consenso que as relações da humanidade consigo mesma e com o ambiente não podem continuar nesta rota de destruição e degradação e deve-se aprofundar o debate, questionar os valores e ações das comunidades humanas em benefício da nossa espécie e do planeta.
Uma parte considerável destes movimentos fala de um "Novo Capitalismo", da correção dos erros e desvios do capitalismo como se este fosse também vítima das crises que se tem acumulado ao longo dos últimos 40 anos (tomando como marco histórico o Maio de 68).
Propostas para reformar o capitalismo sobre outras bases mais éticas, humanas, solidárias - em uma expressão amansá-lo - corrigindo seus supostos desvios, como a crise financeira especulativa, estão na ordem do dia e tem tomado o tempo de muitas pessoas de boa fé.

Mas temo que muito do que se escreve sobre isso tem uma carga razoável de ingenuidade uma vez que deixa-se de perceber que o próprio capitalismo produz essas crises, produz simultaneamente riqueza e miséria, tecnologia e poluição, cultura e ideologia. O entendimento da verdadeira natureza do capitalismo, que requer uma boa dose de teoria, revela a impossibilidade de qualquer reforma ou refundação deste modo de produção que alcançou seus limites neste início de século.
A economia fundada na propriedade privada dos meios de produção, na produção de bens para o mercado, da exploração do trabalho assalariado, com o objetivo último da realização do lucro está na raíz de todas as crises comtemporâneas que se manifestam em múltiplas esferas da vida. Essas crises são as muitas faces de uma mesma realidade, o esgotamento do projeto do capital iniciado há mais de 500 anos. O capitalismo cumpriu sua missão histórica dentro do amplo movimento das civilizações humanas, de trazer ao mundo a capacidade técnica e científica de transformar a natureza, de libertar os homens do trabalho brutal e degradante, desevolvendo a capacidade produtiva da civilização. Todas as conquistas alcançadas pelo desenvolvimento do capitalismo estão ameaçadas pela crise maior e menos vísivel do próprio capitalismo que não tem mais os meios de gerir as forças que ele mesmo libertou.
Por exemplo, o desemprego estrutural, resultado do investimento intensivo de tecnologia na produção, não pode ser solucionado pelo endividamento crescente dos consumidores. Quem não tem emprego não pode consumir apesar da capacidade crescente de produção instalada em todo o mundo exigir novos mercados. Um dos problemas mais agudos é o desemprego e a paralização desta capacidade produtiva pela desorganização do mercado financeiro como estamos assistindo hoje. Como conciliar desemprego e consumo? Não há uma solução para esse problema dentro da lógica do capitalismo. A criação artificial de mercados consumidores como foi o caso dos EUA nos últimos 30 anos cobra agora sua fatura. A migração dos empregos industriais da América do Norte para os sudeste da Ásia, razão do sucesso da China principalmente, criou um vácuo de renda efetiva que foi compensado pelo endividamento das famílias norte-americanas. Enquanto as bolhas especulativas se sucediam as dívidas podiam ser administradas e o consumo via endividamento mantido. Com o desinflar da última e maior das bolhas, a hipotecária, a precariedade resultante da desindustrialização veio a tona. O problema manifesto na crise financeira causado pelo excesso de dinheiro (ativos) e dívidas não pode agora, com se está propondo, ser solucionado com mais dinheiro e dívidas! Não se pode resolver essa situação com mais do mesmo.

A intoxicação da sociedade como produto paralelo da atividade capitalista está contaminando todas as dimensões da vida sobre o planeta. Essa intoxicação se manifesta como poluição, degradação ambiental, degeneração das relações interpessoais, como ativos financeiros e violência, como propaganda ideológica e deformação midiática. E muitas das instituições que encontramos hoje na nossa paisagem social perderam sua função e razão de existir. Qualquer sobrevida dada a elas significa perpetuar a toxidade e decadência que está em curso. Propriedade privada, Dinheiro, mercadorias, lucros, mercado e emprego são instituições sobre as quais se estrutura a sociedade contemporânea e são fundamentos da ordem capitalista. Questionar a validade destas instituições e de outras que lhes são derivadas como a mídia convencional - ideologia do capital - é colocar em perspectiva um novo projeto de civilização.

A internet abre uma janela de oportunidade para o debate do que fazer daqui em diante para a superação dessa sociedade em ruínas, contornando a barreira ideológica da grande mídia que insiste em justificar o 'status quo' do insustentável.
Devemos descer aos fundamentos da Terra para reconstruir nossa sociedade com as poderosas ferramentas que o capitalismo desenvolveu. Cabe-nos perceber que precisamos dessas ferramentas mas não mais do capitalismo. Temos que separar aquilo que vamos levar para o futuro de nossos descendentes daquilo que precisamos deixar para trás porque obsoleto e prejudicial.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Crise de realização da mais-valia.

Advertência:

O exposto abaixo é a síntese linear de fenômenos não necessariamente lineares. Todos os movimentos do capital, seus ciclos e crises,
avanços e retrocessos, foram linearizados para revelar o processo subjacente que conduz a evolução histórica do capitalismo. Foram também abstraídas as influências políticas, culturais, aspectos conjunturais e especificidades que, ao contrário de clareá-lo, na maior parte das vezes, o embaralham.


O capital esgotou sua capacidade de extrair a mais-valia em escala ampliada. Não era mais possível, dado o nível técnico alcançado pelas forças produtivas, a extração da mais-valia para o total dos capitais existentes no final da década de 60. A Atividade produtiva sempre foi o locus da acumulação de capital pela exploração deste do trabalho assalariado. Os excedentes assim gerados na forma de lucros eram reinvestidos na ampliação da capacidade produtiva ou no estabelecimento de novos ramos de negócios. Cada novo ciclo de investimentos aperfeiçoava e aprofundava o grau tecnológico das plantas industriais mais intensivas de capital e menos de mão-de-obra. A escala de produção e a produtividade cresceram continuamente produzindo mais lucros e mais excedentes que por sua vez procuravam novas oportunidades de investimento. Ao mesmo tempo aumentava a relação entre o volume do investimento e a quantidade de postos de trabalho produtivo criados por este investimento. Ou seja, quanto maior o capital invertido menor a quantidade de empregos gerados por unidade monetária. Posto de outra forma, o preço da criação de cada novo emprego é sempre maior que no ciclo anterior. Assim, a base de trabalho assalariado empregado produtivamente sobre a qual o capital extrai a sua valorização vem encolhendo historicamente.

A ampliação da escala de produção promove a expansão da produtividade, ou seja, reduz o custo de produção por unidade produzida mantendo os preços das mercadorias competitivos frente aos concorrentes. E ganhos de produtividade se traduzem em aumento da quantidade de unidades produzidas por homem/hora empregado. Digamos que na década de 80, a indústria automobilística no Brasil produzia 1,6 milhões de unidades empregando 800 mil trabalhadores. Quase 30 anos depois esta mesma indústria produz 3 milhões de unidades empregando 300 mil trabalhadores. A produtividade saltou de 2 unidades por homem para 10 unidades. O volume de produção aumentou em termos absolutos enquanto a quantidade de postos de trabalho encolheu também em termos absolutos. O capital investido na produção de automóveis deve agora gerar seu lucro sobre uma base de trabalho assalariado mais estreita. A produtividade cresceu porque cresceram o grau técnico e o volume de capital fixo do investimento. Em contra partida, a massa de salários desse mesmo ramo de atividade diminuiu mesmo que os salários tenham recebido uma parte dos ganhos de produtividade. Assim, mesmo que os salários tenham aumentado seu poder de compra, tomados individualmente, certamente não cresceram na proporção de compensar a redução da massa de salários promovida pela destruição dos 500 mil postos de trabalho do nosso exemplo. O processo que provoca essa cadeia de eventos, racional do ponto de vista dos capitais individuais, estabelece o limite histórico no qual o capital como um todo não encontra mais os meios para a realização da mais-valia e portanto do lucro. Uma produção ampliada em escala - escala agora mundial - que a cada ciclo de investimento desemprega em escala crescente o trabalho assalariado se choca com a retração do número de consumidores assalariados no mercado capaz de demandar esse volume de mercadorias. Para quem vender essa produção ampliada se a quantidade de empregos e seus respectivos salários estão encolhendo?

A reprodução do capital se dá no ciclo produtivo pela transformação do capital monetário em mercadorias e pela venda destas no mercado retornando novamente à forma monetária acrescido de um adicional, o lucro. Sem passar pela mediação da circulação das mercadorias, o capital fica impedido de realizar sua função única que é sua reprodução ampliada, sua valorização. O volume excedente de capital historicamente acumulado não encontra mais investimento produtivo sem prejudicar a eficiência marginal dos capitais já investidos. De outra maneira, cada nova unidade de capital invertida na produção tende a derrubar as margens de lucro dos capitais como um todo porque amplia a oferta de mercadorias e conseqüentemente provoca a queda de seus preços unitários.
Uma forma encontrada pelo capital de compensar a redução dos lucros provocada pela maior proporção de sua porção constante foi ampliar a taxa de extração da mais-valia de sua porção variável, investindo em países onde a mão-de-obra é (ou era) quase gratuita, como é o caso da China e da Índia. O efeito dessa migração do capital produtivo para esses países foi a desindustrialização parcial e a destruição destes empregos nos países centrais.

Financeirização - última etapa.

A abundância destes excedentes de capital sem emprego produtivo inundaram os mercados financeiros globais expandindo fortemente a oferta de crédito, principalmente crédito para consumo. Desse modo, foi possível sustentar os níveis de demanda da produção ampliada pelo endividamento dos consumidores que é o caso presente da economia norte-americana. Mesmo com o desemprego industrial crescente, foi possível gerar empregos pelo financiamento de atividades
não produtivas como serviços financeiros, comercio varejista, serviços pessoais, etc. A circulação intensificada do crédito abundante permitiu a muitas empresas não mais competitivas uma sobrevida no mercado pela troca progressiva de sua atividade principal em direção à especulação financeira. A reciclagem do crédito permitiu ganhos financeiros para cobrir os prejuízos da atividade produtiva. Vendia-se dinheiro através do financiamento das mercadorias. Muitas empresas criaram seus próprios bancos e cartões de crédito que eram mais rentáveis que suas atividades principais. Mesmo que operacionalmente essas empresas fossem deficitárias, os resultados da atividade financeira compensavam esses prejuízos.
A convergência da financeirização do excedente de capital com a precarização do emprego industrial nas economias desenvolvidas gerou as bolhas de endividamento e especulação em espiral ascendente. O lucro fictício substituiu o lucro real nos balanços com a criação artificial de moeda. A expansão da moeda se descolou totalmente da produção real de riqueza. Foi uma nova corrida do ouro, só que dessa vez ouro dos tolos.
A solução, se houver, passa necessariamente pela destruição do excedente do capital financeiro, destruição da moeda escritural criada artificialmente nos últimos 30 anos, em prejuízo de seus detentores - os especuladores. Ou então ocorrerá a destruição das estruturas reais de produção com danos catastróficos para a maioria das pessoas.

De qualquer forma, o capital atingiu seu limite histórico, esgotado pelo seu próprio desenvolvimento, impedido de continuar sua reprodução pelas mesmas forças que ele colocou em movimento. A produção social e a satisfação das necessidades humanas devem, de agora em diante, se fundamentar sobre outra base que não a forma mercadoria e o lucro. A capacidade técnica para a solução da maioria dos problemas já está dada, resultado histórico do desenvolvimento do capital. A degradação ambiental, a pobreza e a miséria, as doenças e a ignorância só podem ser enfrentadas se o paradigma de suas soluções não for o dinheiro, o mercado e o lucro. Ou então estaremos todos condenados ao trabalho de Sísifo, empurrando a pedra do capital até o topo da especulação só para vê-la desabar novamente sobre nós.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Economistas de Praia.

Você está sentado na praia. Começa a observar as ondas, os padrões que elas formam, como mudam com o vento e as fases da Lua. Ainda aprende a relacionar essas mudanças com o calendário. As ondas sobem e descem, em maior ou menor escala, mais rápidas ou mais lentas. Você começa a fazer os gráficos desses movimentos e a partir deles previsões sobre o comportamento futuro do mar. Você fica feliz com o conhecimento que você adquiriu desta maneira astuciosa. Resolve então registrá-lo em um livro que acaba fazendo, para sua surpresa, um grande sucesso.
Você passa a ser consultado pelas pessoas que querem de algum modo tirar proveito prático de seus conhecimentos sobre o mar. Você se tornou um especialista no assunto. Os pescadores vêm consultá-lo, o pessoal do ramo de hotelaria quer saber os melhores pontos da praia para investir, até mesmo os ambulantes vêm conversar com você. Enfim, uma celebridade.
Então, sem qualquer aviso, impossível de ser previsto até mesmo por você, o especialista, um maremoto atinge e destroça a praia e todos aqueles que seguiram seus conselhos. E você, atônito mas vivo porque nesse dia não estava lá, foi chamado a dar explicações sobre o "fenômeno". Você vai tentar esclarecer aquilo baseado em suas observações. Ficará o resto de sua vida dando satisfação sobre o que nunca foi capaz de compreender. Você não sabia nada sobre a formação das correntes marítimas - poderosas e invisíveis - ou sobre geologia do fundo do mar. Tudo o que você sabia se resumia a uma coleção de observações sobre os movimentos superficiais das águas oceânicas. Seu empirismo se contentava em relacionar os fenômenos ondulatórios apreendidos à beira-mar.
Você sem querer acabou entrando para um grupo chamado de "Economistas de Mercado", cheio de gente que, como você, se especializou na análise cientificamente rigorosa das marés e marolas.
Assim como você, jamais compreenderam que o Mar tem uma História resultante de forças imensas, incontroláveis e muitas vezes invisíveis para quem fica na somente na areia.
Continuarão dando suas explicações superficiais mesmo depois de o Sertão virar Mar e o Mar virar Sertão. Vão pregar no deserto somente porque lá também tem areia, esperando que um dia o mar volte com suas ondas e reconstitua a praia.
Fim da historinha. Começa a História.
Nem todos os economistas leram o Capital. Só os inteligentes.